04/10/2008

SINA


Águas de Março. Dilúvio equatorial engolindo a várzea. Na imensa e imersa paisagem líquida o homem agiganta-se na luta pela sobrevivência. Tudo se torna difícil sob o domínio absoluto das águas. A caça, vasqueira. O peixe e o camarão sumiram como por encanto. O açaí, em início de safra, mal começou a pretar. A fome ronda as cabanas erguidas sobre estacas às margens dos rios. Rios prenhes de solidão e de incertezas onde a esperança passa de bubuia à procura da tábua da salvação.
Em silêncio um casco desliza igarapé acima. Mãos ágeis manejam o remo enquanto olhos atentos varrem as copas dos açaizeiros em busca dos frutos da redenção. A safra promete ser generosa: árvores carregadas de cachos; uns verdes, outros na floração, mal saídos das fofóias. Os poucos que vão amadurecendo são disputados por periquitos e araçaris.
Venâncio, nascido e moldado sob o jugo dessa realidade, mantém estreita relação com o meio. Conhece, como a palma da própria mão, cada curva de rio, cada enseada, cada igarapé, cada barranco, cada árvore. Nutre particular afeição pelos açaizeiros e trata-os como extensão de sua família. Daí não ter aderido à exploração palmito, responsável pela dizimação de açaizais inteiros. Não atinava como um palmo de talo salobro, vendido por míseros centavos, pudesse valer mais que todo o açaí produzido durante anos a fio por uma única árvore. Não atinava.
Estanca o casco bruscamente e apura o olhar entre a folhagem: um grande cacho, ainda não totalmente preto, parece sorrir-lhe do alto. Encalha o casco na ribanceira e caminha, afoito, rumo à touceira de açaizeiros a poucos passos da margem do igarapé. Para subir providencia uma peconha entrelaçando folhas de açaizeiro e, em seguida, aplica golpes de terçado no chavascal que envolve a touceira, ação preventiva conta a presença de cobras e outros animais peçonhentos que costumam aninhar-se nesses locais. Ajeita a peconha nos pés, enfia o cabo do terçado no cós do calção, abraça-se à árvore e começa subir. Já a conhece de outras safras; a cada ano vai ficando mais alta e flexível, enquanto que ele, mais pesado e lento. Vencido mais da metade do percurso o açaizeiro começa a vergar perigosamente. Uma rajada de vento faz a árvore inclinar-se ainda mais, obrigando-o a recuar estrategicamente. O cacho de açaí, a poucos metros, acena-lhe, desafiador. Precisa dele para garantir o pirão das crianças. Pensa nelas. Um menino e duas meninas. Pensa na companheira grávida, em véspera de parto, e ganha forças para continuar. A ventania amaina. Recomeça a escalada, vence mais uns metros. Nova refrega, novo recuo. A altura é considerável. Olha para baixo e vê o igarapé como uma boiúna gigantesca serpenteando entre o matagal. Seus pés doem pressionados pela peconha e suas pernas, antes firmes, agora já tremem um pouco. Lembra do irmão mais velho, morto ao cair de um açaizeiro nas mesmas circunstâncias. Pensa em desistir. No meio da safra não se arriscaria tanto. Agora a situação é outra: ir até o fim ou voltar para casa de mãos abanando. Apega-se à Nossa Senhora de Nazaré e vence, com rápidas braçadas, os últimos metros que o separam de seu objetivo. O arco atrás de si denuncia o limite máximo de resistência da árvore. Rápido e preciso retira o facão do cós do calção e golpeia a extremidade da munheca do cacho, arrancando-o da haste com a mão esquerda. Como um raio escorrega até o meio da árvore que, livre do peso, volta à posição original. Trêmulo, suando frio, respira aliviado. O coração ainda bate forte mas já não há o que temer. Desce, agora sem pressa, até tocar o chão. Livra-se da peconha e firma o peso do corpo no chavascal. Sente algo mover-se sob seus pés. Sente a picada. Um a dor fina, lancinante, indescritível percorre-lhe o corpo, do calcanhar à nuca. Rodopia sobre si mesmo e projeta-se ao solo sobre o cacho de açaí...
O Sol ainda vai alto mas os olhos de Venâncio, repentinamente anoitecidos, já não carecem de luz. Já não podem ver o rio, a mata, a jararaca esgueirando-se sorrateiramente entre a folhagem, nem a revoada de periquitos e araçaris que vieram prestar-lhe a última homenagem.


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