25/08/2008

Metamorfose

A noite envolve a floresta em seu sudário. Pouco a pouco a Lua liberta-se das copas das árvores para espiar o rio deslizar em silêncio entre jarandubas. De repente um punhal de fogo rasga a mortalha da noite e o estampido de um foguete quebra o silêncio. Em poucos segundos novos fachos de luz varrem o céu e o troar ecoa nas lonjuras insondáveis assustando a vida notívaga das redondezas e, ao mesmo tempo, avisando os moradores das cercanias que no velho barracão de madeira e palha, debruçado sobre o rio, a festa do santo padroeiro está começando. Após a ladainha, haverá arrasta-pé no salão de paxiúba-batida à luz de velhos candeeiros a querosene.

A Lua vai alta quando cessam os últimos “orai pro nóbis” nas bocas dos rezadores. A parte profana vai come- çar. A cuíra é geral. Num canto da sala, à ilharga do oratório enfeitado de fitas onde alguns cotos de velas ainda ardem nos castiçais de bronze, Dico Pimenta arranca as primeiras notas da velha clarineta herdada do avô, com quem aprendera os primeiros acordes. Presença garantida nas festas do lugarejo, sempre acompanhado da viola fiel do Neco Libório.

Mas nessa noite há um certo quê de intranqüilidade rondando o ambiente. Se no rosto de cada caboclo a preocupação transparece, no semblante de cada ribeirinha há um furtivo ar de ânsia e de espera. Mas, afinal, o que será que semeia tanta preocupação nas almas dos homens e inunda de ansiedade os corações das mulheres? Ninguém sabe explicar com segurança. Tudo começou quando um rapaz passou a freqüentar as festas, saído sabe Deus de que brenhas. Ninguém o conhecia na localidade ou, pelo menos, cruzara seu caminho durante o dia. A verdade é que todas as vezes que havia festas por aquelas bandas lá estava ele envergando elegante terno de linho branco a rodopiar no salão, arrancando suspiros inconfessáveis das moças interioranas e crivando de inveja e ódio os espíritos dos jovens caboclos. E não era para menos: o garboso mancebo, além do alinhado fato branco e do inseparável chapéu de abas largas a sombrear-lhe a face enigmática, ostentava, ainda, um belo relógio de pulso folheado a ouro, um reluzente par de negros sapatos e um vistoso cinturão de pele de cobra com dois rubis encravados na fivela. Jamais alguém o ouvira pronunciar uma só palavra. Um olhar sedutor acompanhado de um leve gesto com a cabeça na direção de uma dama era o bastante para que ela, alma em fogo e o coração em brasa, se lançasse perdidamente em seus braços. E como dançava!... Onde aprendera a dançar daquela maneira ninguém sabia. Nem mesmo a superfície irregular do soalho de paxiúba era capaz de obstruir a elegância de seus passos. Quando menos se esperava, desaparecia sem deixar vestígios, levando consigo, sabe Deus como, a moça com quem dançava minutos antes, deixando, em seu lugar, o medo e a tristeza plantada nos rostos dos amigos e parentes da infeliz. A festa findava ali. No dia seguinte, após fatigável busca, a vítima era localizada num trecho qualquer das margens do rio, olhar mortiço a fitar o vazio, trazendo, agora, a germinar no ventre, a semente indesejável de um amor maldito.

Os mais velhos aceitavam o fato como obra do destino, algo terrível e fatal contra o qual não tinham como lutar. Já os mais jovens não se conformavam ante a situação de terem suas irmãs, namoradas e até noivas infelicitadas por esse ente maligno do qual nem sequer o nome sabiam.

O grão da revolta há muito tempo semeado e regado na alma dos nativos, germinou e ganhou corpo com tanta intensidade que nessa noite um grupo deles planejou acabar com aquele estado de coisas, caso o diabólico rapaz de branco ousasse aparecer na festa.

Indiferente ao destino da humanidade, a Lua singra os mares celeste derramando sua luz sobre seres brutos e mortais. É preamar. O rio interrompe seu fluxo por uns instantes como a recobrar forças para reiniciar sua perene jornada em direção ao mar. De repente, como se fora o próprio luar materializado, uma figura humana em trajes resplandecentes surge no terreiro. Passos lentos e firmes transpõem o batente da porta do barracão. Não há surpresa. Apenas indignação e raiva no olhar dos homens contrastando com a indissimulável alegria bordada no olhar das moças.

Após o impacto emocional do primeiro instante a festa prossegue embalada ao som da velha clarineta do Dico Pimenta, acrescida, agora, de mais um cavalheiro que, indiferente a tudo, volteia pelo salão mal iluminado, ora com uma, ora com outra dama que completamente mundiadas disputam-lhe a posse.

A festa vai rasgando a madrugada quando o estalido seco de uma bofetada dá início à briga premeditada pelo grupo de rapazes com o intuito de nela envolver o intruso dançarino. O furdunço é total. As mulheres, apavoradas, correm em busca de abrigo. O cerco se fecha em volta do misterioso rapaz de branco que num salto felino livra-se da dama e, com movimentos incrivelmente ágeis, vai escapando das peixeiras ávidas de sangue. A cena insólita tende ao sobrenatural. Facas relampeiam em busca do corpo do fantástico ser e nada encontram. O cansaço e o medo apoderam-se dos ribeirinhos. Em dado momento o moço mergulha no mar de facas em direção ao soalho para recuperar o chapéu perdido na contenda. Ao levantar-se uma mancha vermelha macula a lapela esquerda do terno branco. Mortalmente ferido, consegue, num derradeiro esforço, lançar-se porta a fora em direção ao rio. Novas e violentas facadas o prostram, definitivamente, a poucos passos da ribanceira.

O barracão, outrora festivo, se veste de silêncio. Somente o rio murmura entre barrancos sob o jugo da maré vazante. O povo, ainda sem entender direito o que aconteceu, vai formando um circo ao redor do corpo agonizante que, em dado momento, com um pavoroso grunido, estremece devolvendo à fria atmosfera seu último suspiro. Nesse instante, com o terror desenhado nos rostos, os presentes testemunham uma estranha e aterradora metamorfose: aquilo que antes parecera, aos olhos de todos, um par de negros sapatos a deslizar faceiros pelo salão, retoma a forma original de dois acaris; do belo relógio de pulso, que tanta inveja despertava nos corações dos jovens caboclos, nada mais resta além de um pequeno caranguejo e o cinturão de pele de cobra com rubis na fivela, revela-se, agora, uma temível jararaca-do-barranco. Finalmente, rostos banhados de luar e pânico, aquela gente simples do interior da Amazônia o inseparável chapéu de abas largas do rapaz de branco transformar-se, ante seus olhos, numa arraia a debater-se, indefesa, ao lado do corpo inerte e exangue de um formidável boto tucuxi.

2 comentários:

  1. Oi, companheiro. Conforme te disse ontem la na Feira do Livro, vim visitar, vi e gostei. Virei com mais frequência. Parabens!
    Visite meu blog: http://esteblogminharua.blogspot.com

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  2. Jura!
    Tenho te visto na Feira mas não tenho tido tempo de parar para te dar um abraço e levar o teu coração...
    Tá internético agora, heim, cabôco!!
    Precisamos conversar...
    Um grande abraço. Saudades.

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